sexta-feira, 6 de maio de 2011

Mississipi em chamas, direitos inalienáveis e união homoafetiva

La Liberté guidant le peuple (A Liberdade guiando o povo) de Delacroix

“O que é ‘direito inalienável’ se você é um negro? O que significa ‘igual tratamento diante da lei’ se você é um negro? O que significa ‘liberdade e justiça para todos’ se você é um negro?” Essas são indagações feitas no filme ‘Mississipi em Chamas’ e que se encaixam perfeitamente nesse texto. Ontem, 05 de maio de 2011 os Ministros do Supremo Tribunal Federal do Brasil decidiram por equiparar os relacionamentos entre os homossexuais ao dos heterossexuais, dando-lhes status de união estável, com propósito de criar uma família. No entanto, para além da vitória de um dado segmento populacional, estamos falando da vitória da dignidade humana, algo geral, e que transcende o fato de se ser branco ou negro, homem ou mulher, rico ou pobre, gay ou não.

Apesar de tão antiga, essa ideia geral, de opor-se a intolerância não é um fato estabelecido nas sociedades. Filmes ainda da era do cinema mudo já atentavam para isso. D.W. Griffith em um de seus épicos de nome justamente – Intolerância – aborda a questão a partir de quatro histórias: 1) Na Babilônia, onde o ódio religioso é o estopim para a queda de um império; 2) Na Judéia, onde a inveja e o medo de perder o status quo estabelecido fazem com que Fariseus levem Jesus à morte; 3) Em Paris, na noite de São Bartolomeu, em 1572, onde a rainha Catarina de Médici ordena a execução de milhares de protestantes; e 4) Nos Estados Unidos, onde puritanos reformadores acabam com a união e felicidade de dois jovens.

Mas o que intolerância tem a ver com isso? Ela é um dos grandes obstáculos a consolidação e extensão de direitos nas sociedades, em especial, os direitos civis. Os direitos civis englobam os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Sabe o Iluminismo, lembra disso? Pois bem, foi no século XVIII que esses temas começaram a ser tratados sistematicamente. E, posteriormente, na Revolução Americana e na Francesa de 1789, eles foram confirmados como fundamentais, e desde então, muitas Constituições ocidentais, inclusive a brasileira, incorporam essas cláusulas como pétreas. Esses direitos fundamentais ainda se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis e de não ser condenado sem processo legal regular. Enfim, estamos falando da liberdade individual.

Mas, mesmo com esse marco regulatório, muitos grupos vivem sofrendo Discriminação*, Preconceito** e Racismo***. E em muitos casos, para reverter a situação, precisa-se da intervenção de poderes do âmbito federal, tal como se passa em Mississipi em Chamas. Em uma pequena cidade a segregação divide a população em brancos e negros e a violência contra os negros é uma constante. Neste contexto, dois agentes do FBI investigam as supostas relações das mortes com a Ku Klux Klan (KKK) que atua deliberadamente na localidade, inclusive com a conivência dos poderes públicos. Essa mesma Ku Klux Klan é retrata em outro filme do mesmo D. W. Griffith – O Nascimento de uma Nação – que em linhas gerais exalta a escravidão e justifica a existência da segregação racial. Nesse controverso longa, explica-se que a KKK surgiu para ir contra os abolicionistas, mulatos e republicanos. Por ser algo bastante arraigado na sociedade estadunidense (o racismo), é apenas no período entre 1961 e 1968, nos governos de John Kennedy e Lyndon Johnson, que o governo federal dos Estados Unidos, adota medidas contra a segregação racial com o apoio da Corte Suprema. Porém, como esperado, houve grande resistência às medidas nos estados sulistas. Nessa época, é válida a atuação de Martin Luther King, em especial, com a Marcha sobre Washington de 1963. Estas ações levaram o Estado norte-americano a sancionar o Ato dos Direitos Civis (igualdade racial de direitos) e o Ato dos Direitos do Voto (proibição de medidas que invalidassem o direito de voto dos negros). Por outro lado, vale a nota de que o primeiro homossexual abertamente assumido (Harvey Milk), a ocupar um cargo público ocorreu apenas nos anos de 1970, no importante Estado da Califórnia, no mesmo EUA.

Dessa forma, os dois casos, o dos casais homoafetivos no Brasil, e dos negros nos Estados Unidos, mostram-se emblemáticos por serem acontecimentos decididos a partir da intervenção da instância máxima do Poder Judiciário, e acima de tudo, da vitória da herança Iluminista pautada em direitos inalienáveis. Pense que a defesa de uma atitude discriminatória ou preconceituosa frente a um grupo, justifica o mesmo tipo de comportamento perante outros grupos. A aplicação de direitos não é algo que existe na natureza, como um dado, mas é um construto social, e tal como a amizade, vive a partir de laços de confiança. Como esses laços são muito voláteis, flexíveis e com baixo poder de tensionamento, todos os esforços para a sua manutenção são ainda pouco satisfatórios. Ou seja, para além das leis, é preciso vigilância da população, visto que qualquer pessoa que vê episódios de discriminação e ignora, é tão culpado pelo quadro geral existente na sociedade, quanto aquele que puxa o ‘gatilho’.

Finalizo esse texto com uma fala da atriz Frances McDormand (Sra. Pell) que faz o papel de esposa de um dos responsáveis pelos assassinatos dos negros na cidade, e peça chave para o desvendamento dos crimes em Mississipi em Chamas.

- É feio.
- Esta coisa toda é tão feia.
- Você sabe o que é conviver com tudo isto?
- As pessoas nos vêem como fanáticos e racistas.
- O ódio não nasce com as pessoas.
- Ele é ensinado.
- No colégio, diziam que a segregação estava na Bíblia.
- Gênesis 9, versículo 27.
- Aos 7 anos você já ouviu o bastante, e passa a acreditar.
- Você acredita no ódio.
- Você vive o ódio, respira o ódio.
- Você se casa com ele.

Boa reflexão!
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*tratamento injusto de pessoas devido ao seu pertencimento a determinado grupo;
**atitude de se julgar uma pessoa com base nas características reais ou imaginárias de seu grupo;
***crença segundo a qual uma característica visível de um grupo, como por exemplo, a cor da pele, indica sua inferioridade e justifica a sua discriminação.

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